O uso do VAR (árbitro de vídeo) em determinados jogos nos últimos tempos e de forma massiva durante a Copa do Mundo da Rússia em 2018, e algumas vezes ainda deixando polêmicas no ar, me fez refletir se a tecnologia sempre irá resolver todos os problemas.
No mundo inteiro e em diferentes áreas das nossas vidas, cada vez apostamos que a tecnologia irá nos propiciar uma existência cada vez melhor e um trabalho cada vez mais eficiente:
Carros autônomos, lojas onde tudo é self-service, equipamentos médicos mais modernos, aplicativos diversos para nos tornar mais produtivos, algoritmos que irão tomar decisões melhores que nós tomamos e que irão prever acontecimentos devido sua capacidade de analisar um vasto número de dados.
Enfim, esses acima são apenas alguns exemplos da infinidade de aplicações que a tecnologia se faz presente e que buscamos sempre aperfeiçoar.
Apesar de muitas áreas complexas terem uma vantagem enorme com a utilização da tecnologia, penso que tantas outras nós colocamos muito peso na parte tecnológica e menos na parte humana, principalmente naquelas áreas que as coisas não são tão 0 ou 1.
Ou seja, que exigem um pensamento mais crítico, complexo e dependente do contexto que, por enquanto, somente as pessoas possuem. Quando tiramos do nosso julgamento qualquer aspecto de que a tecnologia pode não ser suficiente, ela vai mais nos prejudicar do que ajudar:
Seja nos fazendo ter um resultado ruim, pior do que ter feito algo sem ela ou por simplesmente a usar de forma errada e descartá-la completamente como se fosse inútil.
O caso do VAR no futebol
Faz um bom tempo que o futebol precisava incluir elementos tecnológicos para facilitar as decisões dos juízes e diminuir os erros de arbitragem durante os jogos.
Erros que muitas vezes significavam equipes que perderiam títulos injustamente e outras que ganhariam porque foram ajudadas por esses mesmos erros.
Eu amo futebol, acompanho desde muito pequeno e sempre me frustrou quando meu time do coração ou os times que eu jogava sofriam com algum erro.
O uso do sensor na bola na Copa do Mundo de 2014 já foi um avanço para não ter mais a polêmica se a bola entrou no gol ou não (apesar dessa tecnologia não ter sido estendida aos campeonatos nacionais e internacionais de clubes ao menos está presente na Copa do Mundo) e o uso em todas as partidas do VAR já mostrou que, em muitos lances, não deixou que um erro da arbitragem prejudicasse uma das equipes.
Mas porque eu digo “muitos lances” e não “todos os lances”?
Porque no futebol nem todas as jogadas de falta são 0 ou 1. Muitas delas para dizer se foi ou não foi exige a interpretação das pessoas que irão tomar a decisão:
A mão que tocou na bola foi proposital? O braço nas costas do jogador foi um lance normal da conquista do espaço em campo ou foi um empurrão que impediu a ação do adversário? A entrada para roubar a bola foi forte o suficiente para ser falta ou é apenas um lance de contato normal?
Essas respostas não são tão simples. Elas vão exigir que além de ver o lance de muitos ângulos as pessoas que estão encarregadas da arbitragem façam essas análises dentro de um espaço curto de tempo.
Em lances claros como impedimento, um carrinho, um contato mais duro, um lance para cartão, o VAR se mostrou muito eficiente. Mas no jogo do Brasil e Suíça ele não impediu que a polêmica surgisse.
A minha opinião é de que não foi falta no zagueiro do Brasil mas foi pênalti no lance do Gabriel Jesus.
Existe no futebol uma dicussão sobre o jogador que valoriza nos lances de falta para demonstrar com mais ênfase que sofreu a falta e que isso é um erro porque daria uma impressão oposta, a de que não teria havido infração.
De qualquer forma, tanto o juiz, o bandeirinha responsável por aquela parte do campo e a equipe que cuida dos lances pelo vídeo, acharam que ambos os lances eram regulares.
Muitos que estavam indignados com a decisão, começaram a questionar a validade do VAR nas partidas de futebol. Como se a tecnologia não poderia ajudar mais do que prejudicar. Como se ela fosse culpada.
Mas isso só acontece porque se deu tanto peso a ela que no momento que o resultado não correspondeu as expectativas, ela foi vista como inútil.
E é vista como inútil mesmo tendo sido responsável por grandes acertos que impediram injustiças claríssimas.
O que se esqueceu é que no futebol ainda temos lances que exige interpretação, diferente de outros esportes que é muito claro o que é ou não é uma infração.
No futebol é bem provável que o VAR irá ser importante em muitos lances, mas em outros nem ele vai conseguir mudar a percepção e julgamentos das pessoas que estão comandando o jogo.
Por isso a análise a ser feita sobre seu sucesso não é se ele irá levar a 0 os erros, mas se após seu uso os árbritos passaram a ter um desempenho melhor e os resultados passaram a ser menos influenciados por decisões equivocadas dos mesmos.
Armas de Destruição Matemáticas
Tanto se fala em Big Data, em algoritmos para nos auxiliar a tomar melhores decisões e até fazer escolhas em nosso lugar. Achamos que tudo nesse cenário é concreto, afinal são cálculos matemáticos analisando uma infinidade de dados.
Não tem influência humana, correto?
Errado.
No livro Weapons of Math Destruction, a autora Cathy O’neil explora como em muitas situações esses algoritmos são prejudiciais e só aumentam as desigualdades.
Isso acontece porque eles estão cheios de vieses, pré-julgamentos, preconceitos e dados ruins imputados pelas pessoas que estão desenvolvendo os mesmos.
Esse é um fator importante, não podemos esquecer que tudo isso é criação de pessoas que carregam uma carga cultural e estão inseridas em um contexto que muitas vezes os fazem transportar suas crenças para dentro do seu trabalho.
Nessa era do Big Data tem aparecido pessoas como Cathy que fala desse problema dos vieses incoporados aos algoritmos e aos modelos usados. E que isso é um grande problema que precisa ser combatido.
Em Weapons of Math Destruction alguns exemplos apresentados de modelos ruins incluem:
Avaliação de professores e de escolas que prejudicam escolas de regiões mais pobres, decisões judiciais que afetam diretamente pessoas em grupos que já são as mais visadas pelo próprio sistema judicial, ofertas de créditos e seguros que negam ajuda a pessoas somente por estarem dentro de um perfil social e demográfico.
Em todos esses casos os mais prejudicados pelos modelos são os que já são historicamente prejudicados e isso só aumenta as desigualdades. A tecnologia trás mais problemas do que resolve.
É muito importante que as pessoas entendam isso e estejam cientes das limitações e desafios do uso de modelos quando estes estão poluídos com os nossos próprios vieses.
Precisamos dessa visão mais crítica.
Confiança exagerada em dados brutos
Esse caso é um desdobramento do primeiro e segundo item que falei acima.
Quem não lembra da polêmica de uns anos atrás quando o Facebook publicou que após uma análise de interesses das pessoas uma grande universidade americana estaria indo em direção ao seu fim? Ou quando se festejou que o Google foi capaz de prever um surte de gripe antes da CDC, Center of Disease Control dos Estados Unidos?
Somente para vermos depois a universidade respondendo ao Facebook na mesma moeda e o Google, no longo prazo, não ter se mostrado melhor que o órgão de saúde, indo até pior do que o mesmo para prever surtos da doença?
Isso acontece porque por mais complexa que pode ser a solução utilizada para chegar aos resultados ela vai ser apenas um olhar de dados brutos fornecidos por pessoas, sem considerar o momento, motivo e contexto onde ela está inserida.
Essas situações me lembram uma propaganda da Adobe falando da sua solução de Analytics muito boa:
Claro que a propaganda mostra uma situação inusitada, mas é bem comum olharmos dados da maneira apresentada:
Confiamos tão cegamente neles que no fim, a nossa decisão que deveria ser melhor acaba sendo pior.
Esse tipo de problema eu vejo muito forte no mundo dos negócios onde hoje tudo precisa ser data-driven e as vezes esquecemos que nesse mundo praticamente tudo que acontece envolve pessoas tomando decisões.
Tem uma passagem que acho muito interessante:
It would be nice if all of the data which sociologists require could be enumerated because then we could run them through IBM machines and draw charts as the economists do. However, not everything that can be counted counts, and not everything that counts can be counted.
Nem tudo que pode ser contado (medido) importa e nem tudo que importa pode ser contado (medido).
Pelo menos não pode ser medido da maneira que pensamos quando falamos em data-driven onde tudo vai ser 0 ou 1.
Já vi situações que a busca pelo uso de números, modelos e tecnologia para análise preferia ter dados ruins e não confiáveis onde os problemas eram claros e reconhecidos do que não ter nada.
Somente para se ter onde se agarrar na hora de decidir, mesmo que a decisão tenha o potencial de ser ruim. Pior do que se fosse uma escolha baseada no feeling, experiência e vivência do profissional.
A passagem que citei acima é de um artigo chamado Informal Sociology: A Casual Introduction to Sociological Thinking, de William Bruce Cameron escrito em 1963.
Quando interações humanas estão presentes é bem provável que a tecnologia pode ajudar mas não irá resolver tudo por si só.
Indo além dos dados
Acima eu falei sobre casos onde queremos usar a tecnologia para nos movimentarmos em um vasto oceano de dados e tirar deles as melhores conclusões ou que eles nos entreguem a resposta.
Mas em nosso dia-a-dia a tecnologia é muito presente e apostamos nelas para melhorar nossa vida.
Ou ao menos é isso que elas prometem e é isso que nós esperamos. Será?
Um caso bem claro é o dos aplicativos de transporte. A Uber se propõe como uma solução melhor na mobilidade urbana.
Essa é uma promessa forte, talvez para uma parcela das pessoas seja melhor do que sair com seu carro. Mas não deixa de ser mais um carro na rua. Existe uma troca, mas não uma solução melhor de fato no que diz respeito a mobilidade urbana.
Querendo ou não, a forma mais adequada é a que entrega para mais pessoas uma melhor mobilidade. Não só ajudando a deixar a viagem mais tranquila e com melhor tempo mas também deixando a cidade sem problemas de trânsito intenso, poluição e que atenda a maior parte da cidade.
Até que ponto os aplicativos de transporte são realmente uma solução para resolver todos os problemas como as promessas feitas?
Talvez aqui o problema seja nas promessas feitas e nas expectativas que criamos. Pode ser efeito da mesma falta de senso crítico que surge quando falamos nos algoritmos mágicos.
Queremos acreditar que as novas Startups, produtos e tecnologias vão chegar com uma nova mentalidade dos negócios e o que sair dali será o suficiente para um mundo melhor para todos.
As Fintechs, por exemplo, querem ser uma opção muito melhor do que os bancos tradicionais. Eu uso algumas, e em conveniência são excelentes mas elas ainda são infinitamente menor do que esses bancos que as quais querem competir.
Não sabemos como será daqui um tempo, com todos os desafios de escala, mais serviços financeiros e clientes mais exigentes. Quando a principal fonte de receita não seja os aportes de investidores.
Quando um modelo de negócio redondo terá que ser responsável pela sustentabilidade. Quando chegar a hora de prestar contas a investidores e, após uma oferta de ações na bolsa, aos acionistas.
Quando essas Startups se tornem empresas consolidadas. É nesse momento que vamos ter uma visão melhor se elas chegaram para resolver todos os problemas conhecidos de relacionamento com bancos ou se acabarão com os mesmos problemas ou até com novos.
Viva a tecnologia
Apesar dela não resolver tudo, não quer dizer que ela não nos ajude a chegar em soluções que antes seriam muito difíceis de se alcançar.
Tudo vai depender em como enxergamos a nossa relação com ela.
O VAR irá fazer o futebol melhor e mais justo. Os algoritmos nos ajudam e vão nos ajudar mais ainda se combatermos e termos a visão crítica de se acabar com os vieses que imputamos neles.
Com o tempo é possível que previsões do futuro se tornem melhores, mas precisamos saber as limitações de qualquer previsão. Aplicativos, novos produtos e startups vão trazer melhorias, isso é recorrente na história da humanidade, mas sempre leva um tempo para vermos o que resolveu e os novos problemas que surgem.
Temos que parar com um comportamento de apostar todas nossas fichas e ficarmos deslumbrados com tudo que é tecnológico como se isso fosse a resposta para tudo.
Não é. Ainda vamos precisar utilizar nossas habilidades únicas de empatia, pensamento crítico, análise do contexto que estamos e da sociedade ao nosso reador para chegar em soluções melhores.
Então, a tecnologia resolve todos os problemas? Não.